segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

POR QUE ESTUDAR CRIMINOLOGIA?

Caros alunos, segue instigante texto da Prof. Vera Regina Pereira de Andrade, da UFSC,
sobre a importância do que estamos estudando. 

Por que a criminologia (e qual criminologia) é importante no ensino jurídico?
Vera Regina Pereira de Andrade

Tendo sido responsável pela criação da disciplina Criminologia nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina,  e ministrando-as, juntamente com outros  colegas, há quase quinze anos, sinto-me à vontade  para falar da importância da disciplina nos Cursos Jurídicos brasileiros - precisamente a importância na qual apostamos - razão deste escrito à comunidade jurídica. Imperioso, pois, registrar que, apesar do Ensino Jurídico brasileiro de graduação e, sobretudo, de pós-graduação, contar com  excelentes e consagradas cátedras de Criminologia,  duas evidências  (empiricamente verificáveis) são ainda marcantes: uma, é a da ausência ou do lugar residual, periférico, que a disciplina ocupa na grade curricular,  regra geral,   optativa. A outra, é a de que, quando presente, são as Criminologia críticas que ocupam nela um lugar residual, cabendo a centralidade à Criminologia positivista.  Trabalho, portanto, com uma dupla hipótese: a disciplina Criminologia ocupa pouco espaço no Ensino Jurídico e as Criminologias críticas pouco espaço na Criminologia. O Direito Penal, a contrario sensu, ensinado à luz da Dogmática Penal e, portanto, o Direito Penal dogmático, ocupa um lugar central e espaçoso (I, II, III, IV, V). Mas, qual é a relação existente entre Direito Penal (dogmático) e Criminologia? Qual a importância da Criminologia no Ensino do Direito? Mas, de que Criminologia estamos falando, se "a" Criminologia no singular não existe?
Tais interrogantes, colocados aqui no início do século XXI, soariam familiares na Europa de finais do século XIX e transição para o XX, entre nomes célebres como Franz Von Liszt, Enrico Ferri, Arturo Rocco, pois foi precisamente o debate sobre as relações entre Direito Penal e Criminologia e a performance que deveriam assumir no marco de um "modelo integrado de Ciências Penais" a musa daquele tempo, e cujo modelo, então  consolidado e ainda dominante, nos ajuda a compreender aquele estatuto "ausente-periférico" da Criminologia. É que no modelo oficial que então se consolidou (a favor da "Gesamte Strafrechtswissenschaf" de Liszt e contra o modelo de Ferri), e  cujos três pilares, reciprocamente interdependentes,  serão o Direito Penal, a Criminologia e a Política Criminal, haverá uma divisão metodológica, cabendo à Criminologia desempenhar uma "função auxiliar", tanto do Direito Penal como da Política Criminal oficial, inteiramente abrigada no marco da dicotomia  dever-ser/ser. Com efeito, enquanto a Dogmática do Direito Penal, definida como "Ciência"  normativa, terá por objeto as normas penais e por método o técnico-jurídico, de natureza lógico-abstrata,  interpretando  e sistematizando o Direito Penal positivo (mundo do DEVER-SER) para instrumentalizar   sua aplicação com "segurança jurídica",  a Criminologia, definida como Ciência causal-explicativa, terá por objeto o fenômeno da criminalidade (legalmente definido e delimitado pelo Direito Penal) investigando suas causas  segundo o método experimental (mundo do SER) e  subministrando os conhecimentos antropólogicos e sociológicos necessários para dar um fundamento "científico" à Política Criminal , a quem caberá, a sua vez,  transforma-los em "opções" e "estratégias" concretas assimiláveis pelo legislador (na própria criação da lei penal) e os poderes públicos,  para prevenção e repressão do crime.
Estrutura-se, neste momento, uma Criminologia de corte positivista, com pretensões de cientificidade, conformadora do  chamado  paradigma "etiológico", e segundo a qual a criminalidade é o atributo de uma minoria de sujeitos perigosos na sociedade, que, seja pela incidência de fatores individuais, físicos e/ou sociais, apresenta um maior potencial de anti-sociabilidade e uma maior tendência a delinqüir Identifica-se, assim, criminalidade com violência individual.
O modelo integrado caracteriza-se, portanto, por uma divisão metodológica do trabalho, associada a uma unidade funcional, na luta, então declara-se, cientificamente fundamentada contra a criminalidade. Neste modelo, o Direito Penal, pelo seu escopo prático e pela promessa de segurança, recebeu  a coroa e a faixa de rainha,  reinando com absoluta soberania, enquanto a Criminologia e a Política Criminal  se consolariam, e bem, com  faixas de segunda e terceira princesas. E é com este título que a Criminologia atravessa o século XX, quando um outro concurso vem mudar a sua historia: nele, a Criminologia não desfila nem concorre com o Direito Penal dogmático, ela senta-se à mesa de jurados, mas com nova roupagem,  para julgar o Direito Penal, e sua própria roupagem anterior. Refiro-me à mudança do paradigma etiológico para o paradigma da reação social, processada desde a década de 60 do século XX, que deu origem a  outra tradição criminológica crítica (Criminologia da reação social, Nova Criminologia, Criminologia radical, Criminologia crítica stricto sensu, Criminologia feminista), segundo a qual a Criminologia não mais se define como uma ciência que investiga as causas da criminalidade, mas as condições da criminalização, ou seja, como o sistema penal, mecanismo de controle social formal (Legislativo - Lei penal – Polícia - Ministério Público - Judiciário - Prisão - ciências criminais - sistema de segurança pública, etc.) constrói a criminalidade e os criminosos em interação com o controle social informal (família – escola – universidade – mídia – religião – moral - mercado de trabalho - hospitais-manicômios), funcionalmente relacionados às estruturas sociais.
A criminalidade não "é" (não existe em si e per si),  ela  "é" socialmente  construída. Neste movimento, a Criminologia converte o sistema penal como um todo e, conseqüentemente, a Lei Penal e as Ciências Criminais, (dimensões integrantes dele), em seu objeto, e problematiza a função de controle e dominação por ele exercida.
No centro desta problematização estão os resultados sobre a secular seletividade estigmatizante (a criminalização da pobreza e da criminalidade de rua x imunização da riqueza e da criminalidade de gabinete) e  a violência institucional do sistema penal, sobretudo da prisão, a inversão de suas promessas, a incapacidade de dar respostas satisfatórias às vítimas e suas famílias, e a própria Criminologia etiológica e o Direito Penal dogmático são denunciados em sua função instrumentalizadora e legitimadora da seletividade, nascendo daí uma nova problemática para a Política Criminal: quais são as alternativas à prisão e ao sistema penal? 
Com esta revolução opera-se a passagem de uma Criminologia comportamental e da violência individual (positivista), que nos doutrina a "ver o crime no criminoso" (Ferri), para uma Criminologia da violência institucional, que   nos ensina que não se pode compreender o crime, a criminalidade e os criminosos  sem compreender o controle social e penal que os constrói como tais, e esta culmina numa Criminologia da violência estrutural, que nos ensina a compreendê-los  não apenas  a partir da mecânica do controle, mas funcionalmente relacionada às estruturas sociais (o capitalismo, o patriarcado, o racismo...). A seletividade do sistema penal é revelada, assim, como classista, sexista e racista, que expressa e reproduz as desigualdades, opressões e assimetrias sociais.
Desta forma,  a mudança de paradigmas desloca e redefine a Criminologia  de um saber auxiliar do Direito Penal e interno ao modelo integrado (que o cientificiza), para um saber crítico e externo sobre ele (que o problematiza e politiza) convertido em "objeto" criminológico, ao ponto da obra de Criminologia mais importante do século XX, de autoria de Alessandro Baratta, ter sido denominada "Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à Sociologia Jurídico-Penal". É a vez da Criminologia julgar o Direito Penal e sua própria história para concluir que a perda do reinado naquele concurso jurídico  não equivaleu, para a Criminologia etiológica,  à perda do reinado na história do controle penal moderno.
Ora, a historicidade da disciplina opera decisivamente a favor da compreensão do estatuto ausente-periférico da Criminologia: a auxiliaridade de ontem se reflete na residualidade pedagógica de hoje (o mesmo se diga, e com mais razão, em relação à 2ª princesa, a Política Criminal) de um Ensino, ademais, centrado na abstração do normativismo tecnicista, cujo modelo reforça aquele estatuto.  Por outro lado, as Criminologias baseadas no paradigma da reação social não apenas não obedecem a esta lógica, mas a problematiza. Vê-se, neste rapidíssimo escorço, que  as relações entre Criminologia e Direito Penal estão sujeitas, historicamente, a (des)encontros e, dado que não existe "a" Criminologia no singular,  a resposta àqueles interrogantes depende  do paradigma e da Criminologia que orienta nossa visão e discurso. Ora, tanto a inserção (se estudar) e o espaço (quanto estudar) da Criminologia no Ensino do Direito, quanto a definição do  seu conteúdo (o que estudar) , com que método  e para que, envolve um conjunto de definições, a um só tempo, paradigmáticas e políticas,  que  transferem suas marcas ao Ensino, que  têm impacto na construção de sujeitos (subjetividades),  cuja palavra e ação tem impacto, a sua vez, na vida social. Defendo, pois, uma inclusão criminológica  capaz de romper com ambas as hipóteses aqui alinhavadas, a saber, resgatar tanto o espaço da Criminologia no Ensino Jurídico, quanto das Criminologia críticas no Ensino da Criminologia, superando seu estatuto periférico-ausente, sem abortar, por outro lado, a Criminologia tradicional, resgatando, ao máximo, a historicidade da  Criminologia, sem a qual não se compreende como se exerce o poder punitivo (como somos dominados), o discurso oficial (com que seduções legitimadoras) e o senso comum (como somos produzidos e produzimos  o "outro") criminais. Não basta, tampouco, contar a história da Criminologia européia, ou norte-americana, temos que mergulhar na Criminologia latino-americana e brasileira, em busca de nossa identidade, sem olvidar, em derradeiro, que se a Criminologia enquanto pretensão disciplinar e científica parece ser um invento da modernidade ocidental, uma escavação arqueológica (Foucault) nos revela que, em busca de uma discussão sobre crime e pena, o céu é o limite.
A Criminologia tem, portanto, uma importância decisiva para o Ensino do Direito, desde que não reduzida a uma rubrica excludente que, mais do que valorizar a disciplina e auxiliar na compreensão do poder e do controle social e penal  (crime, criminalidade, pena, criminalização, vitimação, impunidade, etc), do poder-espaço dos operadores jurídicos nesta mecânica, concorra para infantilizar o imaginário acadêmico, com a visão positivista da boa "ciência" para o combate exitoso da criminalidade. A Criminologia, ao contrário de todas as suas promessas, não nasceu para isso e não pode fazê-lo. Ensinar Criminologias, nesta perspectiva, é concorrer para a formação  de uma consciência jurídica crítica e responsável, capaz de transgredir as fronteiras, sempre generosas, do sono dogmático, da zona de conforto do penalismo adormecido na labuta técnico-jurídica; capaz de inventar novos caminhos para o enfrentamento das violências (individual, institucional e estrutural) e este talvez seja o melhor tributo que possam prestar ao Ensino e à formação profissional-cidadã.   

Jornal Carta Forense, terça-feira, 18 de março de 2008

Mia Couto - Medo - Conferências de Estoril 2011

Caros alunos, conforme referido, eis a excelente conferência de Mia Couto. 
Conversamos sobre ela na próxima aula!
Até lá!