sexta-feira, 11 de maio de 2012

ESPERANÇA?

Caros, a seguir, excelente texto do Prof. Édson André de Souza, da Psicologia da UFRGS, mencionado em aula nesta manhã. Acho que ele tem muito a nos dizer. Espero que apreciem. Abraços!

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Ainda há esperança?

Por Edson Luiz André de Sousa

O princípio esperança I. Ernst Bloch. Rio de Janeiro: Eduerj: Contraponto. 2005.

Ainda não é noite o dia todo, ainda há uma manhã para cada noite.
Ernst Bloch

“Que as coisas continuem como antes, eis a catástrofe!” Essa pérola de Walter Benjamin esquecida em um dos labirintos do monumental Paris, capital do século XIX
talvez seja uma das imagens mais precisas do que venha a ser o espírito do princípio
esperança que nos Ernst Bloch anuncia. Vivemos entre essa catástrofe apontada por
Benjamin com sua força destruidora que nos joga abruptamente de volta aos ritmos
já conhecidos da melodia do mundo triste, sempre tão igual, e a esperança de uma
outra manhã que surpreenda como algo novo. Bloch (1885-1977) é um dos grandes
pensadores da utopia e construiu em seus 92 anos de vida uma surpreendente
reflexão sobre a esperança, mostrando o quanto esse afeto/conceito foi negligenciado.

Ao delinear uma breve e densa história da filosofia, da história e da política, Bloch
mostra como o adestramento dos espíritos, pela maquinaria do funcionamento
social, enclausurou os sonhos em algumas vitrinas coloridas e esvaziou de tal forma
o espírito das utopias, que hoje usamos essa palavra quase para desqualificar uma
ação. Com esse livro, primeiro de uma série de três volumes, ele aposta ainda na
esperança e reafirma a força dos resistentes. Foi escrito entre 1938 e 1947 enquanto
a humanidade vivia tempos de grande destruição, e alguns sonhos foram queimados
de forma cruel em campos de extermínio. Bloch produz o texto como forma de eco
à tecnologia do mal que se desenhava em seu país. O livro, começa com cinco
perguntas que secas, diretas, essenciais – “Quem somos? De onde viemos? Para onde
vamos? O que esperamos? O que nos espera?” – soube esperar, pois só foi publicado
em 1959 com algumas revisões que o autor ainda pôde fazer. Bloch, assim, foi muito
cauteloso para penetrar a escuridão e poder sair, como ele mesmo diz, da paralisia de
nosso miserável conhecimento. Ele insiste em vários momentos do livro em afirmar
que há uma proximidade que turva o olhar da mesma forma como ao pé do farol não
há luz.

Sem um horizonte que nos acorde de nossa letargia acomodada não podemos
ver mais nada. Sem a provocação do amanhã não poderemos sair do castelo das
fatalidades descrito por Leibniz. Mas o fundamental é que se trata de um horizonte
que nos joga no aqui e no agora. Esse é, aliás, o princípio motor das utopias desde
Tomas Morus e sua ilha de sonhos. As utopias sempre foram ficções críticas que
queriam pensar o agora e transformá-lo. Bloch não se conforma a uma realidade que
nos indica que “sonho” precisamos sonhar para nos manter funcionando como
máquinas que esqueceram seu princípio de funcionamento. Há sonhos que paralisam.

Critica, portanto, o sonho diurno contemplativo disfarçado com as roupagens do
grande saber e que joga o sujeito contemporâneo em um eterno adiamento do viver.
É surpreendente que tenhamos esperado quase 50 anos para ter a tradução
dessa obra no Brasil. Como um livro que aborda o futuro demora tanto para chegar
em um país profetizado por Stefan Zweig como o país do futuro? Por isso, essa
publicação surge como a luz de uma estrela distante, mas ainda em tempo. Certamente
serão poucos seus leitores, pois ninguém, infelizmente, tem mais tempo e fôlego
para um livro de mais de 400 páginas. Os três volumes somam mais de mil páginas.

Aqueles, contudo, que se aventurarem nessa experiência fantástica encontrarão
imagens surpreendentes que Bloch vai buscar em inúmeros campos do conhecimento
e sobretudo na literatura. Imagens que nos convocam à ação e tentam substituir o
bafio do porão pelo ar da manhã, como nos lembra o filósofo. Assim, podemos
recuperar as imagens do sonho que move a vida e que nos faz acreditar ainda em um
outro mundo possível. Vivemos contaminados pelo ontem, pelo senso comum que
anestesia as potências criativas que todos em algum canto da alma possuem. A
utopia está tanto nos grandes movimentos sociais que a história já conheceu como
nos pequenos atos que podem revolucionar o dia de qualquer um de nós.

Superar o velho hábito confortável que nos conduz à mesma trilha no meio do deserto, dizer
o que ainda não se disse, imaginar o que ainda não existe é o que alimenta a
esperança. Bloch não negligencia esses detalhes em seu livro, mesmo que construa
como pano de fundo de sua reflexão uma densa análise das amarras que o capitalismo
teceu e, como contraponto, um outro pensamento inspirado sobretudo em Marx,
que apostava em uma humanidade socialmente possível. Recorre à arte indicando a
criação como a revolta necessária que nos conduz ao amanhã. Percorre inúmeras
obras na literatura, na música, no teatro, na dança, no cinema, nas artes . Reconhece
que é no ato de criação que a vida é possível, e assim podemos nos poupar um
pouco da morte, já que viver cada dia as mesmas coisas vai matando aos poucos.

São poucos os livros de Bloch disponíveis nas livrarias brasileiras, e a maior parte
de sua obra ainda continua inédita em português. Bloch quer pensar como se
constroem as realidades, as categorias do possível, o verniz das ideologias, o desperdício
das forças vitais capturadas no fatalismo interesseiro que diz: não há saída! “Quando
não se consegue achar uma saída para a decadência, o medo se antepõe e se
contrapõe à esperança”, diz Bloch. Medo e esperança são palavras presentes em nossa
história política recente. Diante panorama de catástrofe que país vem vivendo entre
a violência da esquina e a indecência nos bastidores da política, reação possível é
apostar na idéia de Bloch de que pensar é transpor. Pensamos com imagens. Assim
precisamos de novas imagens que redesenhem nossas vidas com o cuidado de não
aquecer a mesma sopa na panela nova. É catastrófico o relato de Thomas Bernhard de
que, retornando à escola depois da guerra, percebeu substituindo a fotografia de
Hitler um crucifixo. O prego, contudo, era o mesmo. Mudar o prego significa sonhar
para frente, já que o princípio esperança de Bloch aposta no que ainda não veio a ser.

FREUD ALÉM DA ALMA

Caros,
Ó vídeo a seguir é a primeira parte do filme "FREUD ALÉM DA ALMA". Espero que fiquem curiosos e desejem ver até o fim.
Abraços!

terça-feira, 8 de maio de 2012

É POSSÍVEL CRIMINALIZAR A CONDUTA DE "VIVER NA RUA"?

Hungria criminaliza sem-teto com penas de até 6 meses de prisão


Budapeste, 6 mai (EFE).- Uma polêmica lei na Hungria aperta o cerco legal aos 30 mil sem-teto do país, que podem ser condenados a seis meses de prisão por viverem na rua.
A normativa, que entrou em vigor há três semanas e recebeu críticas de organizações de defesa dos direitos humanos da Hungria e de outros países, os obriga a se mudarem para algum dos centros de amparo, embora neles não haja lugar para todos.
A lei prevê penas crescentes para os que continuarem nas ruas: após uma primeira advertência, em caso de reincidência, impõe-se uma multa de 500 euros (R$ 1.260). Caso não tenham o dinheiro para pagá-la, terão de passar seis meses na prisão.
Apesar da ameaça, um grupo de três sem-teto em uma das ruas de Budapeste próximas a um centro comercial não parece, por enquanto, estar preocupado.
"Os policiais não nos pedem para sair, mas procuramos algum lugar nos arredores onde não podem nos encontrar", conta um deles à Agência Efe, acrescentando que nunca iria aos centros, pois neles só há "mau cheiro, roubos e desordem".
A lei prevê que as sanções só sejam aplicadas em localidades que assegurem alojamento às pessoas desabrigadas, algo que não ocorre em nenhuma cidade do país.
A rejeição da legislação, uma das mais restritivas na Europa, é esmagadora. Organizações civis húngaras como a União para as Liberdades Fundamentais (TASZ) e a internacional Human Rights Watch (HRW) pedem a anulação da lei.
Esta medida significa um "grave problema" do ponto de vista dos direitos humanos, ressalta a HRW. Para a TASZ, a lei viola a ideia do tratamento igualitário das pessoas.
Stefania Kapronczay, diretora de programas da TASZ, explica à Efe que a legislação é anticonstitucional e destaca a falta de programas sociais de habitação e trabalho, lembrando que a Defensoria Pública levou o caso ao Tribunal Constitucional para sua revisão.
Esta lei nacional completa um processo de sanções que foi se expandindo. Primeiro foi uma lei municipal em Budapeste que proibia viver nas passagens subterrâneas de Budapeste, e depois foram impostas multas em vários distritos da cidade.
Um sem-teto que se apresentou como "Maci Laci" (um personagem de desenho animado), em um centro de amparo do bairro de Obuda, ironizou esta pressão crescente sobre os moradores de rua: "Por que não jogamos todos os sem-teto no (rio) Danúbio? Isso seria uma solução para o problema!".
Nos primeiros meses deste ano, mais de 270 pessoas foram detidas em Budapeste pela aplicação da lei municipal, embora a maioria dos casos tenham resultado em uma "advertência".
"Até o momento, não temos informações de que algum sem-teto tenha sido multado (pela normativa nacional), mas a lei significa uma tremenda ameaça", diz à Efe Attila Takacs, também sem-teto e ativista da ONG "A Város Mindenkié" (A cidade é de todos).
Segundo Takacs, que trabalha e vive na redação de uma rádio alternativa de Budapeste, as autoridades realizam "campanhas" em determinados períodos, mas sua experiência indica que o comportamento dos policiais é ambíguo.
Ele afirma que os policiais, em sua maioria, "estão fartos" de terem de participar dessas ações, e limitam-se a pedir aos sem-teto para abandonarem as ruas, "mas quando recebem a ordem, prendem".
Muitos sem-teto opinam que a única solução para sua situação é encontrar um trabalho, o que está cada vez mais difícil devido à crise, mesmo com a ajuda de organizações civis e vários centros de amparo.
"Eu trabalhei durante um ano, vivendo em uma barraca e me banhando todos os dias no Danúbio", comenta Zsuzsa, de 60 anos, que agora vive em um centro de amparo, mas sem trabalho, embora sonhe em se mudar para um imóvel social, onde não tenha de compartilhar quarto.
Os centros de amparo do país variam desde salas para mais de 100 pessoas até albergues com quartos com duas camas, banheiros, internet e cozinha, embora estes últimos sejam escassos.
Um novo aspecto dos últimos meses é que "também apareceram na rua os ciganos sem-teto", acrescenta Takacs, surpreso, já que "os laços familiares entre os ciganos são muito fortes, uns ajudam os outros". Embora o número continue reduzido, isso indica que a crise está se agravando.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

PRESÍDIO CENTRAL: CADA VEZ PIOR...

Caros, mais uma triste notícia sobre o Presídio Central (fonte: http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/geral/noticia/2012/04/presidio-central-passa-por-fase-mais-critica-desde-inauguracao-diz-juiz-3717640.html)
 

Presídio Central passa por fase mais crítica desde inauguração, diz juiz

 
Ao inspecionar o Presídio Central de Porto Alegre, esta manhã, o juiz Sidinei Brzuska, da Vara de Execuções Criminais da Capital, afirmou que a cadeia passa pela fase mais crítica desde sua inauguração em 1959 por conta de degradações estruturais. A falta de investimentos, especialmente em redes de esgoto, são apontados como problemas gravíssimos.

Cansado de cobrar melhorias, o magistrado desabafou:

— Me sinto desesperançado. É uma realidade que a gente convive há tantos anos e não se consegue um mínimo de melhora. É o pior momento. Isso é um processo gradativo de deterioração. São prédios muito antigos, estão superlotados, não há como resolver — lamentou.

Com 4,6 mil presos onde cabem 2,6 mil, o Presídio Central vem sendo remendado ao longo do tempo, sem jamais atingir as condições adequadas de funcionamento.

O foco das críticas são a obras de saneamento, cobradas dos governantes há quatro anos, sem que o que problema seja resolvido. Uma da situações mais graves é a da tubulação de esgoto. Saturada, despeja dejetos a céu aberto, corroendo pilares de concreto, desmoronando pisos dos pátios internos e propiciando a proliferação de insetos e ratos em um ambiente que chega a receber 2,2 mil visitas diárias, incluindo crianças.

Brzuska apontou outros problemas graves como obras em uma nova cozinha, paradas há quase dois anos, rede elétrica expostas pelo lado de fora das paredes e uma galeria que já abrigou cerca de mil apenados e foi interditada por ter sido demolida pelos presos.

O juiz vistoriou a cadeia acompanhado de uma comitiva que fiscaliza presídios da Promotoria Especializada Criminal da qual fizeram parte os promotores Gilmar Bortolotto, Luciano Pretto, Sandra Goldman Ruwel e Cintia Jappur.

Zero Hora encaminhou e-mail à Superintendência dos Serviços Penitenciários solicitando informações sobre obras no Presídio Central, mas até o momento não obteve resposta.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

A "Estética do Mal" (ZAFFARONI)

Caros alunos, conforme nos fala Zaffaroni, Cesare Lombroso, da Escola Positiva Italiana, teorizou uma verdadeira "estética do mal", sustentando que a própria fisionomia do sujeito poderia nos indicar a sua "tendência delitiva". Seguem algumas imagens de seus estudos em crânios, faces e orelhas. Não deixem ainda de visitar o seguinte site, no qual constam outras imagens e informações sobre o "Museo de Lombroso" em Turim, Itália: http://www.thenautilus.it/Mu_Lombroso.html


sexta-feira, 23 de março de 2012

CRIMINOLOGIA "DESCOMPLICADA"?

Caros, segue excelente artigo do Prof. Lênio Streck acerca desse desejo que temos, no Direito, de tornar coisas extremamente complexas em falsamente simples...REFLITAM! Ótimo final de semana!

Inicio esta coluna semanal (como se diria em linguagem jornalística, “hebdomadária”) falando de um assunto que está na pauta cotidiana da doutrina e da jurisprudência. Com efeito, venho denunciando de há muito um fenômeno que tomou conta da operacionalidade do direito. Trata-se do pan-principiologismo, verdadeira usina de produção de princípios despidos de normatividade. Há milhares de dissertações de mestrado e teses de doutorado sustentando que “princípios são normas”. Pois bem. Se isso é verdadeiro – e, especialmente a partir de Habermas e Dworkin, pode-se dizer que sim, isso é correto – qual é o sentido normativo, por exemplo, do “princípio” (sic) da confiança no juiz da causa? Ou do princípio “da cooperação processual”? Ou “da afetividade”? E o que dizer dos “princípios” da “proibição do atalhamento constitucional”, da “pacificação e reconciliação nacional”, da “rotatividade”, do “deduzido e do dedutível”, da “proibição do desvio de poder constituinte”, da “parcelaridade”, da “verticalização das coligações partidárias”, da “possibilidade de anulamento” e o “subprincípio da promoção pessoal”? Já não basta a bolha especulativa dos princípios, espécie de subprime do direito, agora começa a fábrica de derivados e derivativos. Tem também o famoso “princípio da felicidade” (desse falarei mais adiante!). No livro Verdade e Consenso (Saraiva, 2011), faço uma listagem de mais de quarenta desses standarts jurídicos, construídos de forma voluntarista por juristas descomprometidos, em sua maioria, com a deontologia do direito (lembremos: princípios são deontológicos e não teleológicos!).
Outro fator que colabora para o desenvolvimento desse tipo de fragilização do direito é o ensino jurídico, ainda dominado – ou fundamentalmente tomado – por uma cultura estandardizada. Leituras superficiais, livros que buscam simplificar questões absolutamente complexas. A pergunta que faço é: alguém se operaria com um médico que escrevesse um livro chamado “cirurgia cardíaca simplificada”? Ou o “ABC da operação de cérebro”? Se a resposta for “não”, então (re)pergunto: então, por qual razão, no campo jurídico, o uso desse tipo de material é cada vez mais recorrente?
Avancemos, pois. Se o constitucionalismo contemporâneo – que chega ao Brasil apenas ao longo da década de 90 do século XX – estabelece um novo paradigma, ou proporciona as bases para a introdução de um novo –, o que impressiona, fundamentalmente, é a permanência das velhas formas de interpretar e aplicar o direito, o que pode ser facilmente percebido pelos Códigos ainda vigentes (embora de validade constitucional duvidosa em grande parte). Em tempos de intersubjetividade (refiro-me à transição da prevalência do esquema sujeito-objeto para a relação sujeito-sujeito), parcela considerável de juristas ainda trabalha com os modelos (liberais-individualistas) “Caio”, “Tício” e “Mévio”...!
Os manuais – entendidos aqui, deixo claro, como “modelos prêt-à-porters” de disseminação da dogmática jurídica de baixa densidade científica – mudaram muito pouco nos últimos anos. Portanto, falo de uma certa “cultura manualesca”. Sem generalizar, evidentemente, até porque existem bons manuais. Pois bem. Mergulhados nesse magma de significações (aqui homenageio Cornelius Castoriadis) forjado pelo sentido comum teórico, boa parte dos juristas reproduz sentidos. É a estandartização que, paradoxalmente, cresce dia a dia, em plena era da informatização. Daí ser possível afirmar que parte do material utilizado nas salas de aula das Faculdades de Direito deveria trazer uma tarja com a advertência similar às carteiras de cigarro: “o uso constante desse material pode fazer mal à sua saúde mental”. Além de uma fotografia de um bacharel, com uma expressão bizarra, com o subtítulo: “Usei durante cinco anos e fiquei assim...”.
No âmbito do sentido comum teórico (dogmática jurídica de baixa intensidade teorética), ocorre a ficcionalização do mundo jurídico-social. Confunde-se a ficção da realidade com “a realidade das ficções”... Parcela do que consta nos manuais e compêndios é reproduzida nos concursos públicos.
Não faz muito tempo, em um importante concurso público, foi colocada a seguinte questão: Caio quer matar Tício (sempre eles), com veneno; ao mesmo tempo, Mévio também deseja matar Tício (igualmente com veneno, é claro!). Um não sabe da intenção assassina do outro. Ambos ministram apenas a metade da dose letal (na pergunta não há qualquer esclarecimento acerca de como o idiota do Tício bebe as duas meias porções de veneno). Em conseqüência da ingestão das meias doses, Tício vem a perecer... Daí a relevantíssima indagação da questão do concurso: Qual o crime de Caio e Mévio? Muito relevante; deveras importante...! Qual seria a resposta? Por certo, os nossos tribunais estão repletos de casos como este... Casos como este devem ser corriqueiros!
Outro exemplo que há tempos venho denunciando é o de uma pergunta feita em concurso público de âmbito nacional, pela qual o examinador queria saber a solução a ser dada no caso de um gêmeo xifópago ferir o outro! Com certeza, gêmeos xifópagos - encontráveis em qualquer esquina - andam armados e são perigosos... Pois não é que a pergunta voltou a ser feita, desta vez em concurso público de importante carreira no Estado do Rio Grande do Sul? A questão de direito penal que levou o número 46 dizia:
“André e Carlos, gêmeos xipófagos [sic – o original da pergunta constou assim], nasceram em 20 de janeiro de 1979. Amadeu é inimigo capital de André. Pretendendo por(sic) fim a vida de André, desfere-lhe um tiro mortal, que também acerta Carlos, que graças a uma intervenção cirúrgica eficaz, sobrevive”.
E seguem-se várias alternativas.
Sem entrar no mérito da questão — e até para não parecer politicamente incorreto e não ser processado pelo gêmeo xifópago que, milagrosamente, sobreviveu —, impõem-se, no mínimo, duas observações: primeira, é importante saber que os gêmeos xifópagos (e não xipófagos, como constou da pergunta) nasceram no mesmo dia (tal esclarecimento era de vital importância!); e, segunda, não está esclarecido o porquê de Amadeu odiar apenas a André, e não a Carlos (afinal, tudo está a indicar que eles sempre andavam juntos – a ironia, aqui, é irresistível).
Agora, falando sério: diariamente temos lutado para superar a crise do ensino jurídico e da operacionalidade do direito. Não está nada fácil. Basta um olhar perfunctório para verificar o estado da arte da crise. Para se ter uma idéia da dimensão do problema, há um importante manual de direito penal – dos mais vendidos - que ensina o conceito de erro de tipo do seguinte modo: um artista se fantasia de cervo e vai para o meio do mato; um caçador, vendo apenas a galhada, atira e acerta o “disfarçado em cervo”. Fantástico. Quem não sabia o que era erro de tipo agora sabe...(ou não!). Só uma coisa me deixou intrigado: por que razão alguém se fantasiaria de cervo (veado) e iria para o meio do mato? Trata-se de um mistério.
O mesmo livro explica o significado de nexo causal, a partir do seguinte exemplo sobre causas preexistentes: “o genro atira em sua sogra, mas ela não morre em conseqüência dos tiros, e sim de um envenenamento anterior provocado pela nora, por ocasião do café matinal”. Que coisa, não? Entretanto, a tragédia familiar não termina aí. O que seria causa “superveniente” no direito penal? O manual dá a solução, com o seguinte exemplo: “após o genro ter envenenado sua sogra, antes de o veneno produzir efeitos, um maníaco invade a casa e mata a indesejável (sic) senhora a facadas”. Significa dizer que o genro foi salvo pelo maníaco (seria o maníaco do parque, que teria escapado da prisão?) Outro mistério para a ciência jurídica resolver...
E o que seria erro de pessoa no direito penal? Resposta “perfeita”: é quando o agente deseja matar o pequenino filho de sua amante, para poder desfrutá-la (sic) com exclusividade (sic). No dia dos fatos, à saída da escolinha, do alto de um edifício, operverso autor efetua um disparo certeiro na cabeça da vítima, supondo tê-la matado. Noentanto, ao aproximar-se do local, constata que, na verdade, assassinou um anãozinho que trabalhava no estabelecimento como bedel, confundindo-o, portanto, com a criança quedesejava eliminar. Permitamo-nos imaginar a cena: alguém quer matar o filho da amante para “desfrutar” da mãe do infante! Ele queria exclusividade! Que sujeito tarado e perverso, não?
Ah, se o direito penal fosse tão fantasioso, engraçado ou simples assim. O problema é que sempre sobra (uma porção enorme de) realidade. E como sobra! Com efeito, enquanto setores importantes da dogmática jurídica tradicional se ocupam com exemplos fantasiosos e idealistas/idealizados, a vida continua. Mais ou menos como em uma sala de aula de uma faculdade de direito no Rio de Janeiro, em que o professor explicava os crimes de dano, rixa e estampilha falsa e, lá de fora, ouviram-se tiros, muitos tiros. Na verdade, enquanto o professor explicava os conceitos desses relevantes crimes, várias pessoas foram mortas, em um conflito entre traficantes. Mas o professor não se abalou: abriu seu Código e passou a explicar o conceito de atentado ao pudor mediante fraude!
Faltam-nos, pois, elaborar grandes narrativas no direito. A literatura deveria nos auxiliar, para, a partir disso, abrir frestas no direito para o ingresso da sangria do cotidiano. Uma pitada de Os Miseráveis, de Victor Hugo – que, publicado em 1862, vendeu sete mil exemplares em vinte e quatro horas - poderia ser útil. Quantos Jean Valjeans, personagem que é encarcerado e depois perseguido por ter furtado um pão, existem espalhados no “sistema” carcerário ou no “sistema judiciário”, respondendo processos? A cada dia, deparamo-nos com novos Jean Valjeans... Como disse o camponês salvadorenho – a frase é creditada a um conto de José Jesus de La Torre Rangel – “la ley es como la serpiente; solo pica a los descalzos”!
Mas prossigo: pesquisando um pouco mais, descobri em outro manual que o indivíduo que escreve a carta não pode ser agente ativo do crime de violação de correspondência; também constatei que, para configurar o crime de rixa, é necessário o animus rixandi (sic), e ainda verifiquei que agressão atual é a que está acontecendo, e que agressão iminente é a que está por acontecer (muito instigante, não?). E coisa alheia móvel, no crime de furto, é algo “que não pertence à pessoa”...! Finamente, outro “mistério” foi solucionado pelo manual. Com efeito, havia sérias “dúvidas” acerca do que seria o “princípio da consunção”. Mas a resposta já está nas bancas, nas melhores casas do ramo, através do seguinte exemplo: é quando “o peixão (fato mais abrangente) engole os peixinhos (fatos que integram aquele como sua parte)”. E, pronto. Fiat Lux.
Mas tem mais. Talvez o Top Five da dogmática jurídica (entendida como sentido comum teórico) esteja no seguinte exemplo, retirado do Concurso Público para Ingresso na Carreira de Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro, do ano de 2010.
PROVA ESCRITA DISCURSIVA DE CARÁTER GERAL DO XXIII CONCURSO PARA INGRESSO NA CARREIRA DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (7 linhas para resposta)
12ª Questão: Um indivíduo hipossuficiente, interessado em participar da prática de modificação extrema do corpo (body modification extreme), decidiu se submeter a cirurgias modificadoras, a fim de deixar seu rosto com a aparência de um lagarto. Para tanto, pretende enxertar pequenas e médias bolas de silicone acima das sobrancelhas e nas bochechas, e, após essas operações, tatuar integralmente sua face de forma a parecer a pele do anfíbio.
Frustrado, após passar por alguns hospitais públicos, onde houve recusa na realização das mencionadas operações, o indivíduo decidiu procurar a Defensoria Pública para assisti-lo em sua pretensão.
Pergunta-se: você, como Defensor Público, entende ser viável a pretensão? Fundamente a resposta. (7,0 pontos)
Pois bem. Ao que consta, recebeu nota máxima quem respondeu que o defensor público deveria ajuizar a ação, porque o hipossuficiente tem o direito à felicidade (princípio da felicidade). Ponto para o pan-principiologismo...! Estamos, pois, diante de uma excelente amostra do patamar que atingiu o pan-principiologismo e o estado de natureza hermenêutico em terrae brasilis, que sustentam ativismos e decisionismos. Por certo, deve haver uma espécie de “direito fundamental a alguém se parecer com um lagarto” ou algo do gênero. Como se o direito estivesse à disposição para qualquer coisa. Não parece ser um bom modo de exercitar a cidadania o incentivo – por intermédio de pergunta feita em concurso público - a que advogados de hipossuficientes, pagos pelo contribuinte, venham a se utilizar do Poder Judiciário para fazer “laboratório” ou até mesmo estroinar com os direitos fundamentais. Não faz muito, um aluno recebeu sentença favorável de um juiz federal no RS, pela qual a Universidade deveria elaborar curriculum especial para ele, porque, por “objeção de consciência”, negava-se a manipular animais na disciplina de anatomia, na Faculdade de Medicina. E o que dizer de uma petição feita por defensor público requerendo o fornecimento, por parte do erário (a viúva) de xampu para pessoa calva? Eis, aqui, pois, uma coletânea de elementos que apontam, em pleno Estado Democrático de Direito, paradoxalmente para o recrudecimento do conhecimento jurídico.
Essa crise de paradigma(s) – que denomino de “crise paradigmática de dupla face (conforme delineio em Hermenêutica Juridica em Crise, Livraria do Advogado, 10ª. Ed, 2010) -, à evidência, atinge o conjunto das Instituições encarregadas de administrar a justiça. Com efeito, estas Instituições, reproduzidas a partir de um ensino estandartizado (e, aqui, devemos chamar à balia as Faculdades de Direito e a reprodução do sentido comum teórico por elas proporcionado), sustentam esse gap existente entre, de um lado, a teoria do direito e a dogmática jurídica tradicional, e, de outro, entre a Constituição, os textos infraconstitucionais e as demandas sociais. Assim, se a Constituição da República possui os indicadores formais para uma ruptura paradigmática , estes mais de vinte anos deveriam testemunhar uma ampla adaptação do direito aos ditames da Lei Maior. Mas não parece que isso esteja acontecendo.
Enquanto isso, no mundo das ficções, ficamos discutindo Caios, Tícios e o direito fundamental a alguém se parecer com um lagarto... O que mais falta acontecer? Na próxima semana falarei de outra praga contemporânea, típica de terrae brasilis: os embargos declaratórios...!
 Numa palavra final: mais instigante certamente seria não estarmos discutindo as hilariantes questões de concursos públicos de terrae brasilis, mas, sim, um romance como O Sorriso do Lagarto, de João Ubaldo Ribeiro... Naquela Ilha, o Dr. Lúcio Nemesio fazia experiências, buscando criar um ser híbrido, desprovido de algumas qualidades humanas. No livro, o louco médico tem êxito. Na minissérie que a Globo produziu, a cena final é maravilhosa, quando se vê a câmara focalizando um híbrido de um lagarto e humano escondido na igreja, enquanto um coral entoa um cântico! Pronto. Bem melhor que o direito! Ou seja, como explica o próprio João Ubaldo, o cerne da questão de O Sorriso do Lagarto é a crítica ao tempo que perdemos com as coisas no nosso cotidiano... Tem toda a razão!

domingo, 18 de março de 2012

ALÉM DA PENA

Caros alunos,
Recomendo fortemente que participem do evento "ALÉM DA PENA", que ocorrerá esta semana na Faculdade. Não apenas observem as fotos dos presídios, como também assistam à palestra do Juiz Sidinei Brzuska, da Vara de Execuções Penais de Porto Alegre. Até a próxima aula!

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

POR QUE ESTUDAR CRIMINOLOGIA?

Caros alunos, segue instigante texto da Prof. Vera Regina Pereira de Andrade, da UFSC,
sobre a importância do que estamos estudando. 

Por que a criminologia (e qual criminologia) é importante no ensino jurídico?
Vera Regina Pereira de Andrade

Tendo sido responsável pela criação da disciplina Criminologia nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina,  e ministrando-as, juntamente com outros  colegas, há quase quinze anos, sinto-me à vontade  para falar da importância da disciplina nos Cursos Jurídicos brasileiros - precisamente a importância na qual apostamos - razão deste escrito à comunidade jurídica. Imperioso, pois, registrar que, apesar do Ensino Jurídico brasileiro de graduação e, sobretudo, de pós-graduação, contar com  excelentes e consagradas cátedras de Criminologia,  duas evidências  (empiricamente verificáveis) são ainda marcantes: uma, é a da ausência ou do lugar residual, periférico, que a disciplina ocupa na grade curricular,  regra geral,   optativa. A outra, é a de que, quando presente, são as Criminologia críticas que ocupam nela um lugar residual, cabendo a centralidade à Criminologia positivista.  Trabalho, portanto, com uma dupla hipótese: a disciplina Criminologia ocupa pouco espaço no Ensino Jurídico e as Criminologias críticas pouco espaço na Criminologia. O Direito Penal, a contrario sensu, ensinado à luz da Dogmática Penal e, portanto, o Direito Penal dogmático, ocupa um lugar central e espaçoso (I, II, III, IV, V). Mas, qual é a relação existente entre Direito Penal (dogmático) e Criminologia? Qual a importância da Criminologia no Ensino do Direito? Mas, de que Criminologia estamos falando, se "a" Criminologia no singular não existe?
Tais interrogantes, colocados aqui no início do século XXI, soariam familiares na Europa de finais do século XIX e transição para o XX, entre nomes célebres como Franz Von Liszt, Enrico Ferri, Arturo Rocco, pois foi precisamente o debate sobre as relações entre Direito Penal e Criminologia e a performance que deveriam assumir no marco de um "modelo integrado de Ciências Penais" a musa daquele tempo, e cujo modelo, então  consolidado e ainda dominante, nos ajuda a compreender aquele estatuto "ausente-periférico" da Criminologia. É que no modelo oficial que então se consolidou (a favor da "Gesamte Strafrechtswissenschaf" de Liszt e contra o modelo de Ferri), e  cujos três pilares, reciprocamente interdependentes,  serão o Direito Penal, a Criminologia e a Política Criminal, haverá uma divisão metodológica, cabendo à Criminologia desempenhar uma "função auxiliar", tanto do Direito Penal como da Política Criminal oficial, inteiramente abrigada no marco da dicotomia  dever-ser/ser. Com efeito, enquanto a Dogmática do Direito Penal, definida como "Ciência"  normativa, terá por objeto as normas penais e por método o técnico-jurídico, de natureza lógico-abstrata,  interpretando  e sistematizando o Direito Penal positivo (mundo do DEVER-SER) para instrumentalizar   sua aplicação com "segurança jurídica",  a Criminologia, definida como Ciência causal-explicativa, terá por objeto o fenômeno da criminalidade (legalmente definido e delimitado pelo Direito Penal) investigando suas causas  segundo o método experimental (mundo do SER) e  subministrando os conhecimentos antropólogicos e sociológicos necessários para dar um fundamento "científico" à Política Criminal , a quem caberá, a sua vez,  transforma-los em "opções" e "estratégias" concretas assimiláveis pelo legislador (na própria criação da lei penal) e os poderes públicos,  para prevenção e repressão do crime.
Estrutura-se, neste momento, uma Criminologia de corte positivista, com pretensões de cientificidade, conformadora do  chamado  paradigma "etiológico", e segundo a qual a criminalidade é o atributo de uma minoria de sujeitos perigosos na sociedade, que, seja pela incidência de fatores individuais, físicos e/ou sociais, apresenta um maior potencial de anti-sociabilidade e uma maior tendência a delinqüir Identifica-se, assim, criminalidade com violência individual.
O modelo integrado caracteriza-se, portanto, por uma divisão metodológica do trabalho, associada a uma unidade funcional, na luta, então declara-se, cientificamente fundamentada contra a criminalidade. Neste modelo, o Direito Penal, pelo seu escopo prático e pela promessa de segurança, recebeu  a coroa e a faixa de rainha,  reinando com absoluta soberania, enquanto a Criminologia e a Política Criminal  se consolariam, e bem, com  faixas de segunda e terceira princesas. E é com este título que a Criminologia atravessa o século XX, quando um outro concurso vem mudar a sua historia: nele, a Criminologia não desfila nem concorre com o Direito Penal dogmático, ela senta-se à mesa de jurados, mas com nova roupagem,  para julgar o Direito Penal, e sua própria roupagem anterior. Refiro-me à mudança do paradigma etiológico para o paradigma da reação social, processada desde a década de 60 do século XX, que deu origem a  outra tradição criminológica crítica (Criminologia da reação social, Nova Criminologia, Criminologia radical, Criminologia crítica stricto sensu, Criminologia feminista), segundo a qual a Criminologia não mais se define como uma ciência que investiga as causas da criminalidade, mas as condições da criminalização, ou seja, como o sistema penal, mecanismo de controle social formal (Legislativo - Lei penal – Polícia - Ministério Público - Judiciário - Prisão - ciências criminais - sistema de segurança pública, etc.) constrói a criminalidade e os criminosos em interação com o controle social informal (família – escola – universidade – mídia – religião – moral - mercado de trabalho - hospitais-manicômios), funcionalmente relacionados às estruturas sociais.
A criminalidade não "é" (não existe em si e per si),  ela  "é" socialmente  construída. Neste movimento, a Criminologia converte o sistema penal como um todo e, conseqüentemente, a Lei Penal e as Ciências Criminais, (dimensões integrantes dele), em seu objeto, e problematiza a função de controle e dominação por ele exercida.
No centro desta problematização estão os resultados sobre a secular seletividade estigmatizante (a criminalização da pobreza e da criminalidade de rua x imunização da riqueza e da criminalidade de gabinete) e  a violência institucional do sistema penal, sobretudo da prisão, a inversão de suas promessas, a incapacidade de dar respostas satisfatórias às vítimas e suas famílias, e a própria Criminologia etiológica e o Direito Penal dogmático são denunciados em sua função instrumentalizadora e legitimadora da seletividade, nascendo daí uma nova problemática para a Política Criminal: quais são as alternativas à prisão e ao sistema penal? 
Com esta revolução opera-se a passagem de uma Criminologia comportamental e da violência individual (positivista), que nos doutrina a "ver o crime no criminoso" (Ferri), para uma Criminologia da violência institucional, que   nos ensina que não se pode compreender o crime, a criminalidade e os criminosos  sem compreender o controle social e penal que os constrói como tais, e esta culmina numa Criminologia da violência estrutural, que nos ensina a compreendê-los  não apenas  a partir da mecânica do controle, mas funcionalmente relacionada às estruturas sociais (o capitalismo, o patriarcado, o racismo...). A seletividade do sistema penal é revelada, assim, como classista, sexista e racista, que expressa e reproduz as desigualdades, opressões e assimetrias sociais.
Desta forma,  a mudança de paradigmas desloca e redefine a Criminologia  de um saber auxiliar do Direito Penal e interno ao modelo integrado (que o cientificiza), para um saber crítico e externo sobre ele (que o problematiza e politiza) convertido em "objeto" criminológico, ao ponto da obra de Criminologia mais importante do século XX, de autoria de Alessandro Baratta, ter sido denominada "Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à Sociologia Jurídico-Penal". É a vez da Criminologia julgar o Direito Penal e sua própria história para concluir que a perda do reinado naquele concurso jurídico  não equivaleu, para a Criminologia etiológica,  à perda do reinado na história do controle penal moderno.
Ora, a historicidade da disciplina opera decisivamente a favor da compreensão do estatuto ausente-periférico da Criminologia: a auxiliaridade de ontem se reflete na residualidade pedagógica de hoje (o mesmo se diga, e com mais razão, em relação à 2ª princesa, a Política Criminal) de um Ensino, ademais, centrado na abstração do normativismo tecnicista, cujo modelo reforça aquele estatuto.  Por outro lado, as Criminologias baseadas no paradigma da reação social não apenas não obedecem a esta lógica, mas a problematiza. Vê-se, neste rapidíssimo escorço, que  as relações entre Criminologia e Direito Penal estão sujeitas, historicamente, a (des)encontros e, dado que não existe "a" Criminologia no singular,  a resposta àqueles interrogantes depende  do paradigma e da Criminologia que orienta nossa visão e discurso. Ora, tanto a inserção (se estudar) e o espaço (quanto estudar) da Criminologia no Ensino do Direito, quanto a definição do  seu conteúdo (o que estudar) , com que método  e para que, envolve um conjunto de definições, a um só tempo, paradigmáticas e políticas,  que  transferem suas marcas ao Ensino, que  têm impacto na construção de sujeitos (subjetividades),  cuja palavra e ação tem impacto, a sua vez, na vida social. Defendo, pois, uma inclusão criminológica  capaz de romper com ambas as hipóteses aqui alinhavadas, a saber, resgatar tanto o espaço da Criminologia no Ensino Jurídico, quanto das Criminologia críticas no Ensino da Criminologia, superando seu estatuto periférico-ausente, sem abortar, por outro lado, a Criminologia tradicional, resgatando, ao máximo, a historicidade da  Criminologia, sem a qual não se compreende como se exerce o poder punitivo (como somos dominados), o discurso oficial (com que seduções legitimadoras) e o senso comum (como somos produzidos e produzimos  o "outro") criminais. Não basta, tampouco, contar a história da Criminologia européia, ou norte-americana, temos que mergulhar na Criminologia latino-americana e brasileira, em busca de nossa identidade, sem olvidar, em derradeiro, que se a Criminologia enquanto pretensão disciplinar e científica parece ser um invento da modernidade ocidental, uma escavação arqueológica (Foucault) nos revela que, em busca de uma discussão sobre crime e pena, o céu é o limite.
A Criminologia tem, portanto, uma importância decisiva para o Ensino do Direito, desde que não reduzida a uma rubrica excludente que, mais do que valorizar a disciplina e auxiliar na compreensão do poder e do controle social e penal  (crime, criminalidade, pena, criminalização, vitimação, impunidade, etc), do poder-espaço dos operadores jurídicos nesta mecânica, concorra para infantilizar o imaginário acadêmico, com a visão positivista da boa "ciência" para o combate exitoso da criminalidade. A Criminologia, ao contrário de todas as suas promessas, não nasceu para isso e não pode fazê-lo. Ensinar Criminologias, nesta perspectiva, é concorrer para a formação  de uma consciência jurídica crítica e responsável, capaz de transgredir as fronteiras, sempre generosas, do sono dogmático, da zona de conforto do penalismo adormecido na labuta técnico-jurídica; capaz de inventar novos caminhos para o enfrentamento das violências (individual, institucional e estrutural) e este talvez seja o melhor tributo que possam prestar ao Ensino e à formação profissional-cidadã.   

Jornal Carta Forense, terça-feira, 18 de março de 2008

Mia Couto - Medo - Conferências de Estoril 2011

Caros alunos, conforme referido, eis a excelente conferência de Mia Couto. 
Conversamos sobre ela na próxima aula!
Até lá!